Hoje a
Biblioteca Escolar decidiu partilhar um excerto do livro A Bibliotecária de Auschwitz, de Antonio G. Iturbe, que nos fala
sobre a importância dos livros. Baseado numa história real, que decorreu
durante a Segunda Guerra Mundial, esta história mostra a coragem de um
professor e de uma menina judia que não se rederam ao terror das atrocidades
cometidas nos campos de concentração nazis e mantiveram-se firmes usando os
livros como “arma” para manter viva a esperança e transmitir conhecimento.
“…
- Esta é a tua biblioteca. Não é grande coisa - disse Hirsch, e olhou para ela
de soslaio, para ver que efeito tinha causado.
Não era uma biblioteca extensa. Na
realidade, constituíam-na oito livros, e alguns deles em mau estado. Mas eram
livros. Naquele lugar tão escuro onde a humanidade conseguira alcançar a sua
própria sombra, a presença de livros era um vestígio de tempos menos lúgubres,
mais benignos, quando as palavras falavam mais alto do que as metralhadoras.
Uma época que se extinguira. Dita recebeu os livros um a um, com o mesmo
cuidado com que se segura num recém-nascido.
O primeiro foi um atlas sem capa a que
faltavam algumas páginas e que mostrava uma Europa com países enclausurados e
impérios que tinham deixado de existir havia já algum tempo. O colorido dos
seus mapas políticos que formavam mosaicos de cores vivas – os
encarnados-fortes, os verdes-brilhantes, o cor de laranja, o azul-marinho – contrastava
com o cinzento que a rodeava, marcado pelo castanho-escuro da lama, pelo
ocre-desbotado dos barracões, pelo cinzento do céu encapotado de cinza. Começou
a folheá-lo e foi como se voasse sobre o mundo: atravessava oceanos, dobrava cabos
com nomes exóticos – Boa Esperança, Horn, a ponta de Tarifa -, sobrevoava
montanhas, saltava por cima de estreitos que pareciam roçar-se – como o de
Bering, o de Gibraltar ou o do Panamá -, navegava com o dedo pelo curso da
Danúbio e do Volga, e depois do Nilo. Meter todos os milhões de quilómetros
quadrados de mares, de florestas, todas as cordilheiras da Terra, todos os
rios, todas as cidades e todos os países num espaço tão minúsculo era um
milagre só ao alcance de um livro.
Fredy Hirsch observava-a em silêncio, satisfeito
ao notar-lhe o olhar absorto e a boca aberta enquanto folheava o atlas. Se
tinha alguma dúvida em relação à responsabilidade que acabava de depositar
naquela rapariguinha checa, dissipou-se naquele instante. Soube que Dita
cuidaria muito bem da biblioteca. Tinha esse vínculo que liga algumas pessoas
aos livros. Uma cumplicidade que ele próprio, demasiado ativo para se deixar
apanhar por linhas e linhas impressas em páginas, não tinha. Preferia a ação, o
exercício, as canções, o discurso… Mas apercebeu-se de que havia em Dita essa
empatia que faz que certas pessoas transformem um punhado de folhas num mundo
inteiro só para elas.
Melhor conservado estava o Tratado Elementar de Geometria, que
também mostrava nas suas páginas uma outra geografia: uma paisagem de
triângulos isósceles, de octógonos e cilindros, de filas de números ordenados
em batalhões de exércitos aritméticos, de conjuntos que eram como nuvens e
paralelogramos que tinham qualquer coisa de células misteriosas.
O terceiro livro fê-la abrir muito os
olhos. Era Uma Breve História do Mundo,
de H. G. Wells. Um livro povoado por homens primitivos, egípcios, romanos,
maias… civilizações que criaram impérios, impérios que se desmoronavam para dar
lugar a outros novos.
O quarto era uma Gramática Russa. Dita não percebia nada, mas gostava daquelas
letras enigmáticas que pareciam feitas para contar lendas. Agora que a Alemanha
estava em guerra com a Rússia, os russos eram seus amigos. Ouvira dizer que
havia muitos prisioneiros de guerra russos em Auschwitz e que os nazis os
tratavam com uma extrema crueldade. Não se enganava.
Outro livro era um romance francês muito
estragado, a que faltavam folhas e tinha nas páginas grandes manchas de
humidade. Dita não sabia francês, mas pensou que havia de arranjar maneira de
decifrar o segredo daquela história. Havia também um tratado intitulado Novos Caminhos da Terapia Psicanalítica,
de um professor chamado Freud. Havia mais um romance, este russo, que não tinha
capa. E o oitavo livro era um romance checo num estado calamitoso, um punhado
de folhas pouco seguras na lombada por meia dúzia de fios. Antes que pudesse
pegar-lhe, Fredy Hirsch pô-lo de
lado. Ela olhou-o com uma expressão de bibliotecária contrariada. Gostaria de
ter uns óculos de meia-lua para poder olhar por cima deles, como faziam as
bibliotecárias a sério.
- Este está muito estragado. Não serve.
- Eu arranjo-o.
- Além disso… não é um livro próprio para
menores. E muito menos raparigas.
Dita abriu ainda os olhos, para mostrar a
sua irritação.
- Com todo o respeito, senhor Hirsch, tenho catorze anos. Acredita
mesmo que depois de ver todos os dias como o panelão do nosso pequeno-almoço se
cruza com a carreta dos mortos e de ver dezenas de pessoas entrarem nas câmaras
de gás ao fundo do Lager, me vai
impressionar o que possa ler num romance?
Hirsch olhou para ela, surpreendido. E
não era fácil surpreendê-lo. Explicou-lhe que se tratava de As Aventuras do Bravo Soldado Švejk,
escrito por um alcoólico e blasfemo chamado Jaroslav Hašek, e que continha
opiniões escandalosas sobre política e religião e cenas de moral mais do que
duvidosa muito pouco apropriadas para a idade dela. No entanto, ele próprio se
apercebeu de que estava a tentar convencer-se a si mesmo, sem grande convicção,
e de que a rapariguinha de penetrantes olhos verde-azulados o olhava cheia de
determinação. Esfregou o queixo como se quisesse aparar a barba que lhe fora
crescendo durante o dia. Bufou. Voltou a alisar os cabelos para trás e, por
fim, aceitou. Entregou-lhe também o desconjuntado livro.
Dita olhava para os livros, mas sobretudo
acariciava-os. Estavam rasgados e riscados, manuseados, com cercaduras
avermelhadas de humidade, alguns deles mutilados… mas eram um tesouro. E a
fragilidade tornava-os ainda mais valiosos. Apercebia-se de que tinha de cuidar
daqueles livros como se fossem velhinhos sobreviventes de uma catástrofe porque
tinham uma importância crucial: sem eles, podia perder-se a sabedoria de
séculos de civilização. A geografia, que nos mostrava como era o mundo; a arte
da literatura, que multiplicava por dezenas a vida do leitor; o progresso
científico, que a matemática representava; a história, que nos recordava de
onde vínhamos e talvez nos ajudasse a decidir para onde devíamos ir; a
gramática, que permitia urdir os fios da comunicação entre as pessoas… Mais do
que uma bibliotecária, a partir daquele dia converteu-se em enfermeira de
livros.”
Excerto
do livro A Bibliotecária de Auschwitz,
de Antonio G. Iturbe
Os
livros tornam-se assim verdadeiros aliados em momentos tão particulares. Por
isso, neste momento, o nosso conselho é agarrares um bom livro e aproveitares
para, não só aprenderes mais, mas também viajares sem sair do lugar.
Boas Leituras!
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