quarta-feira, 29 de abril de 2020

Sugestão de leitura (29-04-2020)


Encantamentos

- Para que serve a poesia? Esta é uma daquelas questões que, cedo ou tarde, todos os poetas enfrentam. A resposta mais frequente, mais falha de imaginação e de verdade, assegura que a poesia não serve para nada. Alguns poetas, em especial os portugueses, acrescentam a seguir que também a vida não serve para nada, etc. […]
Na origem, a poesia era uma disciplina da magia. Servia para encantar. Continua a ser assim, embora, no sentido literal, poucas pessoas ainda exercitem essa antiquíssima arte. Uma tarde, em Benguela conheci uma das derradeiras praticantes. Almoçava com amigos, e amigos de amigos, num desses quintalões antigos, carregados de frutos, e de boa sombra, da cidade das acácias rubras. A determinada altura escutei um sujeito que se referiu a uma tal Dona Aurora:
 - A velha receita poesias.
- Recita - corrigi. O homem, um oficial do exército, encarou-me, irritado: 
- Não senhor! Receita! Dona Aurora receita poesias. Resolve problemas de amor, amarrações, mau-olhado, tudo com versinhos. 
Fiquei interessado. Anotei o endereço da curandeira num guardanapo e na manhã seguinte bati-lhe à porta. Dona Aurora morava na Restinga, num casarão, em madeira, muito maltratado. A velha senhora, miúda, muito magra, vestia de cor-de-rosa. Toda a sua força parecia residir na cabeleira, a qual mantinha uma vigorosa rebeldia juvenil. Convidou-me a entrar. Móveis dos anos 50, muito gastos. Estantes carregadas de livros velhos. Aproximei-me. Poesia, e mais poesia: Florbela, Camões, Vinícius, José Régio, Sophia, Drummond, Manuel Bandeira, tudo misturado, num bem-aventurado desrespeito a fronteiras políticas, estéticas e ideológicas. «O meu marido sempre gostou de poesia», justificou-se: «Eu, menos. Foi só depois de ele morrer, há 30 anos, que descobri o poder dos versos.» 
Acontecera um pouco por acaso - contou. Uma tarde deu-se conta de que certos sonetos parnasianos (os mais trabalhosos) a ajudavam a vencer a insónia. Mais tarde, que João Cabral de Melo Neto, a partir de «O cão sem plumas», era muito eficaz no combate à cefaleia. Pouco a pouco foi desenvolvendo um método. Combatia a prisão de ventre lendo alto a Sagrada Esperança. Mantinha o quintal livre de ervas daninhas, percorrendo-o, ao crepúsculo, enquanto soprava devagar «O guardador de rebanhos».
Numa cidade pequena não tardou que tais excentricidades lhe trouxessem, primeiro inimigos, e depois devotos seguidores e pacientes. Hoje, ela recebe a todos, ricos e pobres, na sala onde me recebeu a mim.
Ouve as suas queixas, levanta-se, percorre as estantes, e regressa com a solução. «Quem me procura mais são mulheres querendo reconquistar o coração dos maridos. Recomendo que lhes murmurem, enquanto dormem, algum Neruda, às vezes Camões, outras Bocage.» 
Dona Aurora não aceita dinheiro pelos serviços prestados. «Não sou eu quem cura», explicou-me, «é a poesia».

José Eduardo Agualusa (revista Ler nº 113, maio 212)

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