Encantamentos
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Para que serve a poesia? Esta é uma daquelas questões que, cedo ou tarde, todos
os poetas enfrentam. A resposta mais frequente, mais falha de imaginação e de
verdade, assegura que a poesia não serve para nada. Alguns poetas, em especial
os portugueses, acrescentam a seguir que também a vida não serve para nada,
etc. […]
Na origem, a poesia era uma disciplina da
magia. Servia para encantar. Continua a ser assim, embora, no sentido literal,
poucas pessoas ainda exercitem essa antiquíssima arte. Uma tarde, em Benguela
conheci uma das derradeiras praticantes. Almoçava com amigos, e amigos de
amigos, num desses quintalões antigos, carregados de frutos, e de boa sombra,
da cidade das acácias rubras. A determinada altura escutei um sujeito que se
referiu a uma tal Dona Aurora:
- A velha receita poesias.
-
Recita - corrigi. O homem, um oficial do exército, encarou-me, irritado:
-
Não senhor! Receita! Dona Aurora receita poesias. Resolve problemas de amor,
amarrações, mau-olhado, tudo com versinhos.
Fiquei
interessado. Anotei o endereço da curandeira num guardanapo e na manhã seguinte
bati-lhe à porta. Dona Aurora morava na Restinga, num casarão, em madeira,
muito maltratado. A velha senhora, miúda, muito magra, vestia de cor-de-rosa.
Toda a sua força parecia residir na cabeleira, a qual mantinha uma vigorosa
rebeldia juvenil. Convidou-me a entrar. Móveis dos anos 50, muito gastos.
Estantes carregadas de livros velhos. Aproximei-me. Poesia, e mais poesia:
Florbela, Camões, Vinícius, José Régio, Sophia, Drummond, Manuel Bandeira, tudo
misturado, num bem-aventurado desrespeito a fronteiras políticas, estéticas e
ideológicas. «O meu marido sempre gostou de poesia», justificou-se: «Eu, menos.
Foi só depois de ele morrer, há 30 anos, que descobri o poder dos versos.»
Acontecera
um pouco por acaso - contou. Uma tarde deu-se conta de que certos sonetos
parnasianos (os mais trabalhosos) a ajudavam a vencer a insónia. Mais tarde,
que João Cabral de Melo Neto, a partir de «O cão sem plumas», era muito eficaz
no combate à cefaleia. Pouco a pouco foi desenvolvendo um método. Combatia a
prisão de ventre lendo alto a Sagrada Esperança. Mantinha o quintal livre de
ervas daninhas, percorrendo-o, ao crepúsculo, enquanto soprava devagar «O
guardador de rebanhos».
Numa cidade pequena não tardou que tais
excentricidades lhe trouxessem, primeiro inimigos, e depois devotos seguidores
e pacientes. Hoje, ela recebe a todos, ricos e pobres, na sala onde me recebeu
a mim.
Ouve
as suas queixas, levanta-se, percorre as estantes, e regressa com a solução.
«Quem me procura mais são mulheres querendo reconquistar o coração dos maridos.
Recomendo que lhes murmurem, enquanto dormem, algum Neruda, às vezes Camões,
outras Bocage.»
Dona
Aurora não aceita dinheiro pelos serviços prestados. «Não sou eu quem cura»,
explicou-me, «é a poesia».
José Eduardo Agualusa (revista Ler nº 113,
maio 212)
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